Sobre um Testemunho: A Tácita dos Deuses
O silêncio me deprimiu.
Não era o silêncio do silêncio.
Era o meu próprio silêncio.
Em Ariel, lançado em 1965 recebeu um relançamento em 2004 como Ariel: edição restaurada, ou seja, veio a público a edição tal qual Sylvia Plath preparou, diferentemente da edição póstuma organizada por Ted Hughes que havia eliminado do original treze poemas e incluiu outros treze, fato é que Ted delimitou os eliminados e os rotulou de agressivos. Essa edição restaurada foi simultaneamente lançada nos Estados Unidos e Inglaterra e tem como fato mais curioso e importante o fac-símile do jeito que Sylvia Plath datilografou e organizou seus manuscritos originais. Nesses manuscritos Ariel and other poems tem outros títulos, ou seja, Sylvia teria optado por DADDY and other poems e mais uma vez ela repete esse segundo título com algum subtítulo rabiscado e por fim escolheu, Ariel and other poems e os dedicou para Frieda e Nicholas. O primeiro poema, Morning Song, escrito em 19 de fevereiro de 1961 foi escrito para Frieda Rebecca.
O fato de Sylvia dedicar o poema para a filha pode não parecer nenhuma novidade, aliás, os pais homenageiam seus filhos de muitas formas e esse foi um ato de generosidade da poeta – mãe à filha. O que pode não ser novidade é o prefácio do livro escrito por Frieda Hughes, formada em Artes, poeta, pintora, na idade de seus quarenta e oito anos.
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Frieda Rebecca Hughes |
Numa espécie de testemunho ao público, Frieda desmonta o Ariel anterior e diz que essa edição restaurada segue exatamente a ordem dos poemas deixados pela mãe, e como filha só há de olhar pela ótica da examinação e a da divergência em relação à primeira publicação no Reino Unido em 1965 e subsequente nos Estados Unidos em 1966. Frieda Hughes frisa que as duas edições foram publicadas puramente pela perspectiva pessoal de Ted Hughes dentro de uma esfera familiar e lembra:
“Quando cometeu suicídio, em 11 de fevereiro de 1963, minha mãe deixou uma pasta preta sobre sua escrivaninha, contendo um manuscrito com quarenta poemas. Ela provavelmente tenha trabalhado pela última vez na ordenação do manuscrito na metade de novembro de 1962. ‘Morte & Cia’., escrito no dia 14 daquele mês, foi o último poema a ser incluído em sua lista. Ela escreveu mais dezenove poemas antes de morrer, seis dos quais terminou antes de nossa mudança de Devon para Londres, em 12 de dezembro, e os outros treze nas últimas oito semanas de vida. […] A primeira página do manuscrito, sobriamente datilografada, dá como título da coleção Ariel e outros poemas. Nas duas folhas que se seguem, títulos alternativos foram tentados, então sucessivamente riscados e uma substituição escrita à mão acima deles. Em uma folha, o título foi alterado de Rival para Um presente de aniversário e então para Papai. Em outra, o título mudou de Rival para O caçador de coelhos, a seguir para Um presente de aniversário e finalmente para Papai. Esses novos títulos estão em ordem cronológica (julho de 1961, maio de 1962, setembro de 1962 e outubro de 1962) e dão a ideia de possíveis datas anteriores de reorganização do manuscrito.”
Mesmo que houve supressões de poemas por parte de Ted e enxerto de outros, fato é que Hughes teve um cuidado especial nas edições. Havia muitas opções para compor Ariel devido a trabalhos anteriores deixados como The Colossus de 1960, mas foi a partir de 1961 que muitos poemas ganharam voz, segundo Frieda:
“Possuíam uma urgência, uma liberdade e uma força muito novas no trabalho dela. Em outubro de 1961 surgiram A lua e o teixo, Pequena fuga, segue-se Uma aparição, em abril de 1962. [...] os poemas que ela escreveu tinham voz distinta de Ariel.
São poemas de paisagem sobrenatural, ameaçadora”.
Frieda conta que depois disso, Sylvia ainda escreveu outros poemas, “momentos de perfeito equilíbrio poético, tranquilidade e melancolia – a calmaria depois da tempestade” . Além de que Sylvia passara a escrever com frequência e muita facilidade. O ano de 1962 foi muito produtivo para Sylvia Plath, mas Frieda nos revela fatos que enquanto criança viveu em meio a um turbilhão chamado Sylvia/Ted. Ao relatar a passagem sobre a viagem que o pai havia feito a Londres em junho de 1962, Frieda diz:
“Meu pai iniciou um caso com uma mulher que havia despertado o ciúme de minha mãe um mês antes. Ao tomar conhecimento do caso, minha mãe ficou furiosa. Em julho, a mãe dela, Aurélia, veio a Court Green, nossa casa em Devon, para uma longa visita. A tensão aumentou entre meus pais, e minha mãe propôs a separação, embora tenham viajado juntos a Galway naquele setembro para procurar uma casa onde ela pudesse passar o inverno. No início de outubro com o encorajamento de Aurélia (cujos esforços testemunhei como criança), minha mãe expulsou meu pai de casa.
Meu pai foi para Londres, onde primeiro ficou com amigos e, perto do Natal, alugou um apartamento no Soho. Muitos anos mais tarde ele me contou que, apesar da aparente determinação dela, achava que minha mãe pudesse reconsiderar. ‘Estávamos trabalhando para isso quando ela morreu’, ele disse.
Não querendo a casa em Galway, minha mãe se mudou para Londres comigo e com meu irmão em dezembro de 1962, para o apartamento que havia sido de Yeats, na Fitzroy Road. Até a morte dela, meu pai nos visitou lá quase que diariamente, cuidando de nós sempre que ela necessitava de tempo para si mesma. [...], meu pai deixara para ela a casa em Devon, a conta bancária conjunta, o Morris Traveller preto (o carro deles), e lhe dava dinheiro para nos sustentar. Quando ela morreu, ele não tinha como pagar o funeral, e meu avô, William Hughes, cuidou de tudo.”
O testemunho de Frieda fala sobre a trajetória de Plath como autora, porém sem esquecer que ela tinha uma vida real, não era peça de um tabuleiro de xadrez, objetivo, ou uma de suas personagens, seja na poesia ou na prosa. Sylvia pode ser chamada de diva, mito, doente, artificial, ou qualquer outro adjetivo, porém sabemos que Sylvia Plath era humana e como tal, um ser dual com suas metades, como a própria autora falou:
Nem somos duas pessoas. Muito antes de nos conhecermos éramos só duas metades andando por ai com grandes espaços vazios no formato da outra pessoa. E quando nos encontramos finalmente nos completamos. Mas foi como se não suportássemos sermos felizes e então, nós nos dividimos ao meio outra vez.
Frieda descreve o comportamento da mãe em várias ocasiões, uma dessas passagens diz respeito ao fato em que Sylvia e Ted viviam juntos:
“Minha mãe mostrava seus poemas a meu pai enquanto os escrevia. Mas, depois de maio de 1962, quando suas sérias divergências começaram, ela os guardava para si. Meu pai leu ‘Evento’ no Observer, naquele inverno, e ficou chocado ao ver seus assuntos particulares se tornarem tema de um poema. Minha mãe havia delineado o manuscrito de Ariel começando com a palavra ‘amor’ e terminando com a palavra ‘primavera’, e ele foi claramente ajustado para abranger o período entre quase o término do casamento e a decisão sobre uma vida nova, com todas as agonias e fúrias no meio do caminho. O fim do casamento definiu todas as outras dores de minha mãe e as direcionou. [...] Em dezembro de 1962, minha mãe foi convidada pela rádio BBC para ler alguns de seus poemas, e para isso escreveu suas próprias introduções. Seus comentários foram secos e breves, e ela não fez referência a si mesma como personagem dos poemas. Ela podia até se expor, mas não precisava ser tão clara. Gosto particularmente de dois desses comentários: ‘Neste próximo poema, o cavalo da pessoa que fala está descendo, divagar e frio, uma colina com trilha de macadame, indo para o estábulo ao sopé. É dezembro. Está nublado. Na neblina há ovelhas’. (‘ovelhas na névoa’, embora seja um dos poemas que ela incluiu na transmissão com os poemas de Ariel, não estava relacionado na página do sumário do manuscrito – foi concluído em janeiro de 1963. Meu pai o incluiu na primeira versão publicada de Ariel.) Sobre o poema – título, minha mãe escreveu simplesmente: ‘Outro poema sobre equitação, este chamado’, Ariel ‘em homenagem a um cavalo de que gosto especialmente’.
Essas introduções me fizeram sorrir: são os comentários mais modestos possíveis sobre poemas de imagens veementes e feitos com incrível habilidade. Quando as li, imaginei minha mãe relutante em enfraquecer com explicações a energia concentrada que havia derramado em seus versos, a fim de preservar a destreza deles em chocar e surpreender. [...] Achava que alguns dos dezenove últimos poemas, escritos depois de o manuscrito estar completo, deveriam estar representados. ‘Eu simplesmente quis fazer dele o melhor livro que pude’, meu pai me contou. Sabia que muitos poemas novos de minha mãe haviam sido rejeitados por revistas, por causa de sua natureza extrema, embora os editores os tenham publicado rapidamente quando ela morreu.”
Frieda relata do respeito que seu pai tinha por sua mãe e diz que apesar de tudo o pai foi alvo das fúrias da mãe. E lembra ainda que toda a dor, angústia da mãe ao se matar, foram absorvidos por estranhos que viram nos poemas de Ariel uma espécie de calúnia que Sylvia fizera a Ted, “a crítica a meu pai foi feita mesmo em relação à posse dos direitos autorais de minha mãe, que couberam a ele na morte dela e que ele usou para beneficiar diretamente a mim e a meu irmão”.
Este testemunho de Frieda traz à tona seus pais sob a perspectiva de filha que foi amada pela mãe, assistida pelo pai. Ora a filha enobrece o pai, ora a vez da mãe. E o mais importante disso tudo é que com essas histórias os fãs de Sylvia podem tirar suas conclusões, cada um a sua maneira, porque convenhamos, há muitas controvérsias, muitos estudos dissecaram o post-mortem Sylvia, quase uma obsessão da vida em troca de seus escritos. O que vale a obra que fica? Quanto a morte pode ultrapassar qualquer ato de doação da escrita em vida? Fica um silêncio gritante, um hiato para a escrita, uma pausa para a música, uma exclusão de palavras e significados, o segredo, a Tácita para os Deuses, o estar só consigo mesmo, e mais que tudo são os ruídos que não calam, ou seja, os críticos, a mídia, as pesquisas, os familiares. Frieda reclama a celebração de Sylvia Plath em vida, ela nos diz:
“Eu não queria que a morte de minha mãe fosse comemorada como se fosse um prêmio. Eu queria que sua vida fosse celebrada, o fato de ela ter existido, vivido até o limite de suas possibilidades, por ter sido feliz e triste, atormentada e extasiada, e ter dado à luz a mim e a meu irmão. Acho que minha mãe foi extraordinária em seu trabalho e corajosa em sua luta contra a depressão que a perseguiu por toda a vida. Ela usou cada experiência emocional como se fosse um retalho que pudesse ser reunido para fazer um vestido maravilhoso; não desperdiçou nada do que sentia e, quando no controle desses sentimentos tumultuados, conseguia focar sua energia poética e dirigi-la para obter um grande efeito. E aí estava Ariel, sua realização extraordinária, equilibrada, como ela, entre um estado emocional volátil e a beira do precipício. A arte era não despencar”.
Sandra Puff
REFERÊNCIAS